sexta-feira, 9 de julho de 2010

História, Natureza e Paisagem.

Este texto foi elaborado em parceria com a historiadora Andreza Bianca Silva. Refere-se a notas de estudo de caso da disciplina História, Política, Instituições e Praticas Sociais do Mestrado de História da UFAM.

KEITH THOMAS

A análise de Keith Thomas sobre a relação homem e o mundo natural, tem como ponto de partida os fundamentos teológicos que embasam essa relação. Segundo o autor, a visão tradicional inglesa no tempo dos Tudor e Stuart, era de que a natureza estava subordinada ao homem, sendo que essa relação de subordinação estava pautada no posicionamento de filósofos clássicos e na Bíblia.

Na visão teológica, no momento da criação a relação entre os homens e os animais era pacífica e somente com o pecado original o homem teria perdido o direito de exercer domínio fácil sobre as outras criaturas. Mas, o homem, não teria perdido o direito de dominar a natureza. Então, o discurso teológico foi usado para justificar a autoridade humana sobre o meio natural.

A ciência moderna teria vindo devolver o domínio perdido na criação. O iluminismo teria tornado essa proposição o tema central. Logo, a ciência tinha caráter pragmático e utilitário, o domínio humano sobre o natural. Esse tratamento está embasado na diferença existente entre a humanidade e as outras formas de vida. As capacidades distintivas do homem é a fala, a razão e a livre ação conduzida pela religião. Os homens possuem consciência religiosa.

A fronteira entre o homem e o meio natural é construída a partir de artifícios humanos como moral e religião. A singularidade humana já era de acordo com Thomas, algo defendido desde a antiguidade, de forma polarizada. Esse pensamento foi sistematizado por Descartes, o qual dizia que somente o homem combina tempo, matéria e intelecto. Para Descartes os animais não tinham alma, suas ações eram mecânicas. Visão que antecipou a psicologia mecânica.

Essa separação é estabelecida também pela educação, na qual se busca por meio da “civilidade” e refinamento “elevar os homens acima dos animais”. Os manuais de comportamento como os de Erasmo serviram para construir de forma bem nítida o que é o comportamento humano em distinção aos animais. Além de manter a polaridade existente, para que o limite entre o homem e a criação animal não fosse obstruído. Quem não se enquadrasse nessa lógica, ou seja, não possuísse essência humana era tido como “sub-humano” ou “semi-animal”. A fronteira estabelecida tinha como intuito justificar as ações do homem sobre a natureza.

KAREN LISBOA

O texto de Lisboa toma a obra dos naturalistas Spix e Martius a partir dos preceitos da História Natural, presente no relato da expedição científica pelo Brasil (1817-1820). Segundo a autora o tratamento científico dos objetos naturais é sobreposto a uma discussão “poética da paisagem brasileira”.

Lisboa assinala que a expedição dos naturalistas bávaros Spix e Martius, motivada por missões científicas tinha como mote o estudo da natureza.

O artigo de Lisboa traça duas questões: primeiramente demonstrar a visão de natureza de Spix e Martius, a partir de seus relatos de viagem, posteriormente pretende identificar as bases do ‘projeto civilizatório’ elaborado para a nação.

Segundo a autora o relato dos viajantes deveria coletar informações para: “esclarecer o estado de civilização e história, tanto dos aborígenes como dos outros habitantes do Brasil.” (Lisboa, 1995, p. 77).

A autora afirma ainda que a narrativa constrói-se a partir do deslocamento geográfico e na abrangência dos temas abordados (devido ao que Lisboa denomina de olhar errante) a natureza, portanto, se revela como um dos focos principais de observação.

A natureza dos trópicos era um objeto da pesquisa científica que para Lisboa os naturalistas analisavam mediante sua formação cultural e pelo olhar da História Cultural.

Segundo Lisboa a relação dos autores com a natureza não se reduz ao que se denomina de “taxonomia iluminista e o ávido coletivismo”. Segundo a autora, a observação da natureza é vertida de sentimentos.

A forma de tratar a natureza brasileira lembra Alexander Von Humboldt e Goethe, baseado numa concepção organicista da natureza.A natureza como objeto da ciência torna-se para Martius, semelhante a uma obra de arte.: “Neste sentido pode-se inferir que a descrição do mundo natural passa por uma estetização construída pelo olhar sensível do explorador”. (Lisboa 1995, p. 80)

Lisboa refere-se a Humboldt ao aludir ao tratamento estético dos objetos naturalistas, pois segundo a autora qualquer representação da natureza era um ‘quadro da natureza’”.

A estetização naturalista da Viagem pelo Brasil permite entrever as várias maneiras de sentir o mundo natural. Essas experiências emprestam forma e conteúdo às diferentes paisagens (...) A territorialidade de um Brasil tropical é criada neste espectro de imagens, onde a natureza é interpretada por ambientes paradisíacos e infernais (Lisboa, 1995, p, 81).

Lisboa afirma que o homem representa a lei para a transformação o que possibilita a sua dominação e superioridade do espírito e da mente sob os demais elementos da natureza.

Segundo a autora, Spix e Martius compreendem o processo de civilização como o desenvolvimento da história do homem em cultura, o que consequentemente destrói a vida primitiva das plantas e animais. Ainda segundo Lisboa, esse processo tem o poder de transformar a superfície da terra.

“(...) para Spix e Martius, o grau de dominação do homem sobre a natureza, grosso modo, denota seu estado civilizatório” (Lisboa, 1995, p. 86).

A concepção de natureza engloba o homem e desdobra-se em teorias raciais, emprestando ao europeu a superioridade em relação ao negro e ao índio.

HERMETES REIS ARAÚJO

O Artigo de Hermetes Araújo discute o que o autor denomina de permanência de uma idéia clacissista de natureza no Brasil durante o século XIX.

O autor chama atenção para um movimento de renovação cultural ocorrido a partir dos anos de 1860 e 1870 que se caracterizou no Brasil como o surgimento de uma mentalidade reformista. Entretanto segundo Hermetes Araújo este movimento de renovação cultural não significou uma mudança da idéia de natureza entre a elite cultural e política.

Nas palavras de Hermetes Araújo:

’Ciência’, ‘raça’ e ‘civilização formaram um conjunto de crenças e valores filosóficos que marcou a obra de intelectuais, políticos e literatos, cujo pensamento, naquilo que se refere a uma crítica em profundidade da realidade nacional, alcançou grande repercussão até a década de 1920” (p. 152)

Prevalece no final do século XIX, segundo Hermetes Araújo uma visão de natureza que evoca uma fecundidade divina da terra, que lembrava as idéias fisiocráticas do século XVIII, em virtude do que o autor chama de “vocação agrária” do Brasil.

Essa concepção da natureza transpassada pela visão de fecundidade divina, no caso do Brasil, era preciso segundo Hermestes Araújo, apenas fazer uma boa gestão dos recursos ou das chamadas forças naturais. Como Araújo afirma: “No caso do Brasil, tratava-se da boa gestão da natureza por meio do extrativismo e da agricultura.” (p. 152).

Hermetes Araújo afirma que a partir das descobertas científicas da mecânica clássica o homem podia remontar as forças que possibilitavam a produção. Segundo o próprio autor, o mundo como motor não elimina a idéia de uma natureza portadora de uma fecundidade infinita, mas o homem pode recriar essas forças diminuindo sua dependência.

Esse domínio da força motriz segundo o autor:

(...) forjou na literatura, notadamente no Romantismo, e em especial no Naturalismo, uma imagem do homem e do mundo impregnado de uma concepção histórica, deslocando-o da imutabilidade como eram concebidos na representação clássica para uma temporalidade genética e evolutiva. (p. 154).

No Brasil, segundo Hermetes Araújo, o progresso estava baseado na idéia de gestão das forças naturais, existindo no interior da sociedade uma concepção religiosa e qualitativa de uma natureza mecânica que ainda se pautava numa idéia de que o progresso poderia acontecer mesmo com uma natureza cíclica e trágica, que o autor denomina de “hibridismo entre concepção de natureza e progresso”.

Para analisar a mudança da visão do que o autor analisa como fisiocracia brasileira à termodinâmica, o autor busca compreensão dos fatos a partir da biografia do engenheiro André Rebouças, que segundo Hermetes Araújo, talvez tenha sido o primeiro homem negro do mundo a possuir um diploma de engenheiro.

Segundo o autor, suas atividades foram bastante diversificadas, sendo adepto de um fervoroso progresso técnico e de um cosmopolitismo liberal.

Segundo Hermetes Araújo: “Para Rebouças, a ação racional do engenheiro não era aquela fé dedutiva do positivismo. (...) possuía uma visão demiúrgica da engenharia moderna.” (p. 159)

Ao final do texto, o autor analisa a expansão da economia cafeeira como uma nova fase econômica, política, social, empresarial e tecnológica. Nesta época segundo Hermetes Araújo a ciência e a tecnologia começaram a vencer as resistências impostas pelo território, a partir dos conhecimentos produzidos por expedições científicas e de exploração, formada por brasileiros e estrangeiros.

COMENTÁRIO.

A Obra de Karen Lisboa, Viagens pelo Brasil de Spix e Martius: Quadros de Natureza e Esboços de uma Civilização e a de Hermetes Reis de Araújo, Da Mecânica ao Motor: a Idéia de Natureza no Brasil no final do século XIX, demonstram similitude ao se reportarem ao discurso de necessidade de dominação da natureza e vislumbrarem no século XIX projeções civilizadoras para o Brasil.

Em determinada passagem ao se referir ao período vivido por André Rebouças, Hermetes Araújo analisa de certo modo a cultura brasileira, como caracterizada pela lenta transição do imaginário da vocação agrária para a afirmação do progresso científico, da indústria, e do trabalho livre. (2001, p. 160)

Karen Lisboa (1995) ao analisar a obra de Spix e Martius observa a presença de um discurso que liga a miscigenação ao progresso civilizatório no Brasil quando afirma: “A idéia da miscigenação como propulsora do processo civilizatório esboçada na Viagem pelo Brasil acaba por adquirir relevância no meio dos pensadores brasileiros (...) Martius reitera que a mistura de raças é uma vereda segura para a civilização.” (p. 88)

Ao se referir a uma renovação cultural brasileira no período de 1860 e 1870, Hermetes Araújo afirma a ligação direta entre ciência, raça e civilização, tal qual exposta acima na obra de Lisboa.

’Ciência’, ‘raça’ e ‘civilização formaram um conjunto de crenças e valores filosóficos que marcou a obra de intelectuais, políticos e literatos, cujo pensamento, naquilo que se refere a uma crítica em profundidade da realidade nacional, alcançou grande repercussão até a década de 1920” (p. 152)

Hermetes Araújo ao aludir ao que denomina de fisiocratismo brasileiro afirma que permanecia na classe senhorial brasileira, uma concepção religiosa e qualitativa sobra a natureza, como podemos observar: “A permanência, na sociedade senhorial brasileira, de uma concepção religiosa e qualitativa no seio de uma natureza mecânica e quantitativa não significou obstáculo à crença de que o país poderia progredir (...)” (p. 156).

Karen Lisboa ao se referir ao foco do mundo natural e sua relação com o homem afirma que: “(...) na concepção de Spix e Martius, a natureza é incompreensível sem o homem, pois é ele a maior obra da Criação da Terra. Para ele convergem todos os outros seres (...)” (p. 85)

Na obra O Homem e o Mundo Natural de Keith Thomas o autor explicita a existência de um discurso de supremacia do homem sobre a natureza a partir de uma concepção teológica: “Na Inglaterra dos períodos Tudor e Stuart, a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades.” (p. 21) E mais a frente: “A autoridade humana sobre o mundo animal era, assim, virtualmente ilimitada”. (p. 26).

Keith Thomas afirma que na época acima descrita a teologia fornecia os alicerces morais do predomínio do homem sobre a natureza. (p. 27).

Ao se referir a chamada Civilização Humana, Keith Thomas afirma que esta: “(...) era uma expressão virtual sinônima da conquista da natureza. O mundo vegetal sempre foi fonte de alimento e de combustível; o Ocidente, por esta época, caracterizava-se por sua dependência excepcionalmente alta dos recursos naturais (...)” (p. 31)

Ao se referir ao ideário de progresso, Hermetes Araújo afirma que: “(...) apesar da introdução de um ideário de progresso, atribuindo exclusivamente à ação dos homens a fabricação do seu próprio mundo, no Brasil da segunda metade do século XIX a natureza ainda era pensada à maneira da época clássica.” (p. 156).

Ao falar dos propósitos da ciência, Thomas afirma que o fim da ciência era devolver ao homem o domínio sobre a criação que ele perdera. Segundo Thomas: “Para os cientistas formados nesta tradição, todo o propósito de estudar o mundo natural se resumia em que ‘a Natureza, desde de que conhecida, será dominada, gerida e utilizada a serviço da vida humana’”. (p. 32). Nesse sentido é que se orientavam as pesquisas sobre História Natural.

Karen Lisboa ao se referir aos objetivos dos viajantes Spix e Martius também se refere a chamada História Natural e os progressos das ciência:

A maneira de perceber e observar o mundo natural mediava-se por sua formação cultural (...) a natureza dos trópicos era um objeto de obstinada pesquisa científica, que deveria ser dissecado sistematicamente pelo olhar da História Natural. (p. 78).

Em outro trecho Lisboa afirma que os preceitos da História Natural visavam ocupar-se de toda a natureza e a taxonomia dava margem para a reflexão filosófica onde: “(...) o grau de dominação do homem sobre a natureza, grosso modo, denota o seu estado civilizatório”. (p. 86)

Acerca da produção científica Hermetes Araújo destaca uma série de avanços na mecânica e termodinâmica que segundo ele: “(...) produzia em escala crescente aquilo que, em épocas anteriores, somente se encontrava já formado na natureza.” (p. 153). Demonstra assim que os avanços científicos da época fornecem a possibilidade de supremacia do homem sobre a natureza.

Hermetes Araújo ao se referir ao motor afirma que:

O mundo como motor não elimina a idéia de uma natureza portadora de uma fecundidade infinita. No sistema mecânico, a natureza é fecunda porque a força motriz já está dada, (...) Na termodinâmica, as fontes existentes para a produção de energia são também consideradas inesgotáveis, mas não se trata apenas de forças a serem domesticadas e, sim, de forças a ser produzida numa natureza transformada em reservatório.” (p. 154).

Keith Thomas afirma que as dissertações eruditas do período analisado em sua obra, tinham o objetivo a distinção central entre homens e animais, sendo tentativas de restringir os aspectos animais da natureza humana. (p. 43).

O autor afirma:

“Ao traçar uma sólida linha divisória entre o homem e os animais, o principal propósito dos pensadores do início do período moderno era justificar a caça, a domesticação, o hábito de comer carne (...) Mas essa insistência tão grande em distinguir o humano do animal também teve conseqüências importantes para as relações entre os homens. Com efeito, se a essência da humanidade era definida como consistindo em alguma qualidade específica, seguia-se então que qualquer homem que não demonstrasse tal qualidade seria sub-humano ou semi-animal. (Thomas, p. 49).

Segundo Thomas os séculos XVII e XVIII ouviram discursos sobre a natureza animal dos negros e os índios americanos eram descritos de forma semelhante como podemos notar na passagem abaixo:

Os séculos XVII e XVIII ouviram muitos discursos sobre a natureza animal dos negros, sobre sua sexualidade animalesca e sua natureza brutal. De modo geral, os índios americanos não eram vistos dessa forma, mas, às vezes também eram descritos em linguagem semelhante. (p. 50).

Essa concepção para Keith Thomas legitimava os maus-tratos aqueles que supostamente viviam em condição animal. A ética da dominação humana removia os animais da esfera de preocupações do homem. O autor esclarece ainda: “Mas colônias, a escravidão (...) constituía uma das formas de tratar os homens vistos como bestiais (...)”

Karen Lisboa ao se referir a visão de perfectibilidade dos homens, declarado no relato de viagem de Spix e Martius afirma que estes ao se referirem a idéia de perfectibilidade civilizatória, preocupam-se em esclarecer a suposta decadência dos índios, baseando suas afirmações no que a autora afirmar ser um racismo transparente que embasa a miscigenação racial.

Segundo Karen Lisboa: “Spix e Martius procuram responder às indagações armando-se dos pressupostos da História Natural: ao lado de‘muitos outros seres da natureza’ os índios americanos estão ‘destinados a decompor-se” (p. 87)

Mais a frente a autora esclarece:

(...)O europeu, ou seja, o homem da raça caucásica – dotado de um ‘desenvolvimento superior dos órgãos e forças intelectuais’- deveria sobrepor-se ‘de modo todo específico, tanto somática como psiquicamente’ ao negro (raça etiópica) e ao índio (raça americana). (p. 87)

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